Mensagem

Faça seu comentário no link abaixo da matéria publicada.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O Brasil da minha Avó Mariana

Desde criança sempre gostei muito de ouvir as histórias vivenciadas por minha avó materna que se chama Mariana, relatos de uma vida Severina, causos de uma mulher nordestina que nasceu num Agreste pernambucano pouco convidativo nos idos de Março de 1932. A história de vida da minha avó se confunde com a história de milhares de nordestinas, brasileiras e pernambucanas que trazem consigo resquícios de uma sociedade colonial firmada no machismo, alienação e fanatismo religioso regado à miséria. Em uma noite com o celular nas mãos resolvi gravar suas palavras, o diálogo era sobre fome, miséria e a desgraça dos anos de sua juventude. Como historiadora que sou não deixei de inserir sua fala num contexto histórico familiar aos meus ouvidos e as páginas dos diversos ensaios que nos contaram a tragédia da fome.
            A seguir um relato não de quem ouviu falar, mas de quem vivenciou, de quem chegou a tocar naquele cenário de Vidas Secas, assim com seu jeito simples e sem preocupações ortográficas me relatou minha avó Mariana:
...Era tudo um jiral de varas. Um catatal de vara com uma esteira velha. Era minha “fia”. Era a riqueza, era essa. Mas pronto! Ah minha “fia” eu nasci e me crie foi vendo gente passar necessidade. Roubar mandioca, pelos rosados. Era o povo roubando mandioca pra fazer “bejú”. Aproveitavam que os donos não “tavam” no roçado. Arrancar mandioca.
-Mas foram no meu roçado e arrancaram não sei quantos pés de mandioca.
            Tudo pra fazer “bejú” pra alimentar os “fios”. Tá pensando que era brincadeira era? Hum. Esse povo novo não sabe disso não. Pensa que nunca houve isso não. Mas houve muito viu! O que passou no mundo da “cambada véia”, só quem sabe quem for antigo.
            O povo “ia” pro Juazeiro de pé. Pedir coisa ao meu Padre Cícero. E quando chegava lá, pedia coisa pra ele. Ele dava alguma coisa que ele tinha que tinha poder.
Mas era tanta da coisa que você não sabe de nada não. Chegava numa casa. Aquele horror de gente. Escondidos por que era tudo rasgado, “entangado”. Era fogo. Hum.
Meu pai era uma pessoa... Que meu pai ajudou muito. Ele ajudou muito o povo. Quando ele sabia que tinha uma pessoa passando mal. Ele mandava ir ver coisa lá. Ele tinha feijão de “fole”. Roça pra fazer farinha à vontade. A pessoa ia pro roçado de mandioca assim. Quando dá fé chegava quatro, cinco pedindo umas mandioquinhas pra aprontar pra “relar” fazer “bejú”. Hum. Você não sabe de nada não, mas eu, eu sei. Eu vi coisa quando era criança.
Água? Era uma seca! Tinha ano que era seco. Pra ver uma gota naquele “vinquivinco”, um pote d’água. Na cabeça. Meu pai como tinha “animá” levava numa âncora. Ele tinhas umas âncoras de carregar água. E quem não tinha era na cabeça. Saiam de madrugada aquele rebanho pra ir ver água no Retiro. “Muié” e homem. Tudo. Com os potes na cabeça. E era longe vissi! Mais de légua.
            A volta era fogo.       Hoje todo mundo é rico. Graças a Jesus. Todo mundo é rico, tem ninguém mais pobre não, mas naquele tempo. Daquele povo antigo tem poucos.
            Chegava numa casa. Naquelas casas que tinha o que comer. Era que o povo dava uma coisinha de farinha. Outro um feijão. Por que tinha quem “trabaiava”, quem podia “trabaiava” pra ele, mas muitos não podiam por que iam morrer de fome. Trabalhar pra dá de comer a família.
Ah minha “fia”! A coisa era preta. Eu vi tanta crise na minha vida. Fazia dó.
            O relato acima descrito com riqueza de detalhe foi ao longo da história contado em diversas obras como, por exemplo, Josué de Castro em Geografia da Fome, na literatura por Graciliano Ramos em Vidas Secas, Os Sertões por Euclides da Cunha entre outras obras que se debruçaram sobre este tempo e esta temática, mas todos escritos sob a ótica analítica foram de suma importância para a posteridade, mas não há nada mais valioso que a memória das muitas Marianas, é pessoas que não leram que não ouviram falar, nem se quer sabem que a história de sua vida pertence a um contexto histórico, mas que seus olhos foram testemunhas e suas vidas vítimas de um descaso social materializado, que hoje temos conhecimento através das obras históricas e literárias.
            O Brasil da minha avó Mariana foi este Brasil por ela relatado, um Brasil desigual, cruel, que massacrou milhares de Marianas.
Cibele dos Santos Silva
Especialista em História-Belo Jardim-PE

Um comentário:

  1. Bela história,ja fui um dos que ja houviu essas historias,minha ja nos contou muito.

    ResponderExcluir

Faça seu comentário sobre o Post