Patricia Rodrigues *
A noção moderna de trabalho foi dada
pela economia política clássica e nos leva a duas definições. A primeira definição
nos remete a uma discussão antropológica de trabalho como característica da
ação humana. Para Karl Marx (1818-1883) o trabalho é um ato que se passa entre
homem e natureza, onde o homem coloca em movimento sua inteligência e força a
fim de transformar as matérias da natureza lhes dando uma forma útil. Ao mesmo tempo em que age sobre a natureza
exterior modificando-a ele modifica sua própria natureza desenvolvendo suas
faculdades.
A segunda definição nos remete ao
caráter histórico/social do trabalho, que parte do fato de que as trocas entre homem
e natureza se produzem em determinadas condições sociais que definem o modo de
produção no tempo histórico.
É sobre a perspectiva
histórico/social que quero abordar a questão de gênero, ou mais precisamente
das mulheres, a partir da noção de trabalho assalariado. Problematizo aqui o
conceito de “divisão sexual do trabalho” como um dos problemas chaves da
participação da mulher na vida pública, política, no mundo do trabalho e como
sujeito de direitos.
A divisão sexual do trabalho é a
forma da divisão do trabalho social que decorre das relações sociais de sexo e
sua forma é adaptada historicamente e em cada sociedade, tem como
característica a destinação prioritária dos homens a esfera produtiva e das
mulheres à esfera reprodutiva.
O atual modelo de produção se
baseia na negação do trabalho reprodutivo ou doméstico como trabalho produtivo e o nosso sistema se
equilibra inviabilizando as atividades que sustentam esse trabalho produtivo –
cuidados com as roupas, alimentação, apoio emocional, etc.
A dicotomia trabalho produtivo
e reprodutivo está na raiz da desigualdade entre homens e mulheres e produz a
separação entre o que é esfera pública e privada. O privado fica reservado assim a
esfera doméstica cabendo aí o papel da mulher e a esfera pública está
relacionada ao mundo do trabalho produtivo, da política e ao papel do homem como
provedor. As relações sociais de sexo ou o conceito de divisão sexual do
trabalho permitem dessa forma esclarecer que o tempo do trabalho assalariado ou
remunerado é na verdade condicionado pelo tempo do trabalho doméstico e de
cuidados não remunerado. Desse modo, as questões
que se relacionam a ocupação das mulheres nos espaços públicos e políticos não
podem estar apartadas da discussão sobre a divisão sexual do trabalho que não
se resume na separação entre esfera reprodutiva
versus esfera produtiva, posto que dentro da própria esfera produtiva há
divisão do trabalho entre as tarefas femininas e masculinas.
Mas a divisão sexual do trabalho
também não pode ser considerada mera divisão de funções sociais, uma vez que
está estruturada sobre um sistema de opressão, desigualdade e de relação de
poder, fatores que tem implicações na construção e na forma de organização
espaços públicos bem como na constituição da própria noção de cidadania nos
Estados modernos, formados com base nessas relações assimétricas.
Relacionando isso à formação dos
Estados de bem-estar-social, percebemos uma verdadeira assimetria de gênero
desde sua constituição uma vez que se constituíram com base no modelo de
trabalho produtivo feito pelos homens, portanto homens disponíveis ao trabalho
assalariado e delegava às mulheres a maior parte do trabalho reprodutivo. Não
se trata somente de garantia ou não de direitos aos trabalhadores, mas o fato
de que a constituição da própria cidadania nos estados de bem-estar-social é “frágil”
e limitada porque constituída com base em um modelo que reforça as
desigualdades a partir da reafirmação da divisão sexual do trabalho.
Em muitos países, como no Brasil,
a entrada das mulheres no mercado de trabalho não só não resolveu as
desigualdades entre homens e mulheres como reforçou a divisão sexual do
trabalho, mantendo o padrão de desigualdade em relação a remuneração e aos
postos ocupados por elas, e ao entrarem massivamente no mercado de trabalho, as
mulheres continuam cumprindo as funções do trabalho produtivo e reprodutivo de
modo simultâneo, sem que necessariamente haja compartilhamento das funções
domésticas.
Um estudo realizado pela OIT (Organização
Internacional do Trabalho) revela que a jornada de trabalho média dos homens é de
43,4 horas por semana, enquanto a das mulheres é de 36 horas. Ao todo, durante
a semana, a jornada de trabalho feminina chega a 58 horas, enquanto a masculina
atinge 52,9 horas. Ao somar o tempo que elas dispendem para o cuidado dos
filhos e das tarefas domésticas, o tempo de trabalho das mulheres supera o dos
homens em cinco horas por semana, o que significa dizer que as mulheres
trabalham dez dias a mais por ano que os homens.
Com o aumento da renda
das famílias, aumentou a demanda pelos serviços da trabalhadora doméstica, esse
setor hoje emprega mais de 6,7 milhões de mulheres contra 500 mil homens, o que
coloca o Brasil como o maior mercado de mão de obra doméstica do planeta. Há
como agravante o fato de nossos espaços e serviços públicos não responderem à
necessidade de compartilhar o trabalho reprodutivo, há um déficit de
equipamentos como creches, escolas em período integral como em serviços de
saúde e apoio a idosos, restaurantes e lavanderias coletivas.
Um
avanço importante nesse sentido foi a aprovação da Emenda Constitucional
72/2013, conhecida como PEC das Domésticas,
que garante os mesmos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas.
Um
dos argumentos que aparece tanto do lado de quem critica como de quem defende a
PEC é a alegação de que o espaço doméstico não é produtivo, não gera riquezas. Outras
pessoas afirmam que com a aprovação da PEC haverá milhares de demissões, gerando uma “crise do cuidado”. A crise
do cuidado é o termo que vem sendo utilizada para tratar de uma série de temas
que têm como consequência a recusa feminina em trabalhar de graça.
A
aprovação da PEC na verdade coloca em pauta a estrutura e dinâmica do trabalho
doméstico na nossa sociedade e permitem romper o ciclo que transfere a
sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados sempre para as mulheres. A
equidade de direitos entre trabalho doméstico e outras formas de trabalho é um
passo importante na conquista de diretos e equiparação das trabalhadoras aos
trabalhadores, tendo em vista que as mulheres continuam trabalhando mais e
ganhando menos.
Isso nos
remete à pergunta fundamental sobre a relação entre cidadania e a esfera
pública. Tradicionalmente supunha-se que
a cidadania fosse associada à esfera pública, tanto nos direitos quanto nos
deveres. Mas muitas mulheres ainda vivem grande parte de sua vida dentro de
esferas privadas, domésticas, e não públicas e algumas perguntas se interpõem.
O
trabalho não remunerado de cuidados é compatível com a plena cidadania da
mulher nos espaços públicos? A noção tradicional de cidadania política se
concentra na prática de eleições livres como meio de alcançar a democracia. Mas
a presença de mulheres seria importante ou somente seu direito de votar?
No Brasil, a luta pelo
direito de as mulheres votarem teve início ainda no século XIX mas constitucionalmente as
mulheres conquistaram o direito ao voto em 1932 e somente em 2010 elegemos a primeira mulher ao
posto mais alto da República.
A concorrência das
mulheres em cargos políticos é, portanto, um processo muito recente na vida da
democracia brasileira, que sempre contemplou um número muito maior de homens
concorrendo a cargos políticos.
O Brasil ocupa hoje o
120° lugar na proporção de mulheres nos Parlamentos e, se considerarmos nossa
participação nos executivos, esse ranking despenca mais ainda, tendo em vista
que ainda não é obrigatório o registro na chapa de mulheres para disputa dos
postos executivos. O avanço, nesse sentido, depende de que, além de concorrem
às eleições, essas mulheres tenham condições reais de disputar e ganhar.
Apesar do crescimento nos
últimos anos, o percentual de mulheres na política continua sub-representado,
tendo em vista que apenas 8,7% de mulheres foram eleitas para os postos do
legislativo na última eleição e embora representem 51,7% dos eleitores
brasileiros, a participação das mulheres na Câmara dos Deputados é de 9%,
número semelhante aos 10% registrados no Senado. No Poder Executivo, a situação
não é diferente: das 26 capitais, somente uma têm mulher como Prefeita.
As políticas de ação
afirmativas - seja por meio de estabelecimento de cotas que garantam mecanismos
partidários de mais mulheres na direção, seja por meio de ações que obrigam que
pelo menos 30% de mulheres estejam registradas nas chapas de disputas para
cargos legislativos - são políticas que disputam a correlação de forças da
nossa sociedade e permitem que avancemos por uma maior participação na vida
política/pública, e mais do que isso, com condições de efetivar esses
mecanismos e de realmente ocuparmos esses espaços de maneira paritária.
Há estudos que demonstram
que as políticas relevantes, para as mulheres, são mais frequentemente
implementadas pelos governos quando as mulheres estão presentes nos espaços de
decisão, o que demonstra que somente eleições livres por si só não garantem a
democracia plena e que as mulheres estejam presentes nos espaços políticos
fundamentais.
Assim a presença cada vez maior
das mulheres nesses espaços implica na necessidade de reestruturar
completamente as relações sociais pautadas na divisão sexual do trabalho com
base na reformulação e ampliação dos direitos e na constituição da cidadania
feminina.
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