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terça-feira, 22 de outubro de 2013

Trabalho - Cidadania - Política: uma questão de gênero

Patricia Rodrigues *


A noção moderna de trabalho foi dada pela economia política clássica e nos leva a duas definições. A primeira definição nos remete a uma discussão antropológica de trabalho como característica da ação humana. Para Karl Marx (1818-1883) o trabalho é um ato que se passa entre homem e natureza, onde o homem coloca em movimento sua inteligência e força a fim de transformar as matérias da natureza lhes dando uma forma útil.  Ao mesmo tempo em que age sobre a natureza exterior modificando-a ele modifica sua própria natureza desenvolvendo suas faculdades.

A segunda definição nos remete ao caráter histórico/social do trabalho, que parte do fato de que as trocas entre homem e natureza se produzem em determinadas condições sociais que definem o modo de produção no tempo histórico.

É sobre a perspectiva histórico/social que quero abordar a questão de gênero, ou mais precisamente das mulheres, a partir da noção de trabalho assalariado. Problematizo aqui o conceito de “divisão sexual do trabalho” como um dos problemas chaves da participação da mulher na vida pública, política, no mundo do trabalho e como sujeito de direitos.

A divisão sexual do trabalho é a forma da divisão do trabalho social que decorre das relações sociais de sexo e sua forma é adaptada historicamente e em cada sociedade, tem como característica a destinação prioritária dos homens a esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva.

O atual modelo de produção se baseia na negação do trabalho reprodutivo ou doméstico como trabalho produtivo e o nosso sistema se equilibra inviabilizando as atividades que sustentam esse trabalho produtivo – cuidados com as roupas, alimentação, apoio emocional, etc.

A dicotomia trabalho produtivo e reprodutivo está na raiz da desigualdade entre homens e mulheres e produz a separação entre o que é esfera pública e privada. O privado fica reservado assim a esfera doméstica cabendo aí o papel da mulher e a esfera pública está relacionada ao mundo do trabalho produtivo, da política e ao papel do homem como provedor. As relações sociais de sexo ou o conceito de divisão sexual do trabalho permitem dessa forma esclarecer que o tempo do trabalho assalariado ou remunerado é na verdade condicionado pelo tempo do trabalho doméstico e de cuidados não remunerado.  Desse modo, as questões que se relacionam a ocupação das mulheres nos espaços públicos e políticos não podem estar apartadas da discussão sobre a divisão sexual do trabalho que não se resume na separação entre esfera reprodutiva versus esfera produtiva, posto que dentro da própria esfera produtiva há divisão do trabalho entre as tarefas femininas e masculinas.

Mas a divisão sexual do trabalho também não pode ser considerada mera divisão de funções sociais, uma vez que está estruturada sobre um sistema de opressão, desigualdade e de relação de poder, fatores que tem implicações na construção e na forma de organização espaços públicos bem como na constituição da própria noção de cidadania nos Estados modernos, formados com base nessas relações assimétricas.

Relacionando isso à formação dos Estados de bem-estar-social, percebemos uma verdadeira assimetria de gênero desde sua constituição uma vez que se constituíram com base no modelo de trabalho produtivo feito pelos homens, portanto homens disponíveis ao trabalho assalariado e delegava às mulheres a maior parte do trabalho reprodutivo. Não se trata somente de garantia ou não de direitos aos trabalhadores, mas o fato de que a constituição da própria cidadania nos estados de bem-estar-social é “frágil” e limitada porque constituída com base em um modelo que reforça as desigualdades a partir da reafirmação da divisão sexual do trabalho.
Em muitos países, como no Brasil, a entrada das mulheres no mercado de trabalho não só não resolveu as desigualdades entre homens e mulheres como reforçou a divisão sexual do trabalho, mantendo o padrão de desigualdade em relação a remuneração e aos postos ocupados por elas, e ao entrarem massivamente no mercado de trabalho, as mulheres continuam cumprindo as funções do trabalho produtivo e reprodutivo de modo simultâneo, sem que necessariamente haja compartilhamento das funções domésticas.

Um estudo realizado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) revela que a jornada de trabalho média dos homens é de 43,4 horas por semana, enquanto a das mulheres é de 36 horas. Ao todo, durante a semana, a jornada de trabalho feminina chega a 58 horas, enquanto a masculina atinge 52,9 horas. Ao somar o tempo que elas dispendem para o cuidado dos filhos e das tarefas domésticas, o tempo de trabalho das mulheres supera o dos homens em cinco horas por semana, o que significa dizer que as mulheres trabalham dez dias a mais por ano que os homens.

Com o aumento da renda das famílias, aumentou a demanda pelos serviços da trabalhadora doméstica, esse setor hoje emprega mais de 6,7 milhões de mulheres contra 500 mil homens, o que coloca o Brasil como o maior mercado de mão de obra doméstica do planeta. Há como agravante o fato de nossos espaços e serviços públicos não responderem à necessidade de compartilhar o trabalho reprodutivo, há um déficit de equipamentos como creches, escolas em período integral como em serviços de saúde e apoio a idosos, restaurantes e lavanderias coletivas.

Um avanço importante nesse sentido foi a aprovação da Emenda Constitucional 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, que garante os mesmos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas.

Um dos argumentos que aparece tanto do lado de quem critica como de quem defende a PEC é a alegação de que o espaço doméstico não é produtivo, não gera riquezas. Outras pessoas afirmam que com a aprovação da PEC haverá milhares de demissões, gerando uma “crise do cuidado”. A crise do cuidado é o termo que vem sendo utilizada para tratar de uma série de temas que têm como consequência a recusa feminina em trabalhar de graça.

A aprovação da PEC na verdade coloca em pauta a estrutura e dinâmica do trabalho doméstico na nossa sociedade e permitem romper o ciclo que transfere a sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados sempre para as mulheres. A equidade de direitos entre trabalho doméstico e outras formas de trabalho é um passo importante na conquista de diretos e equiparação das trabalhadoras aos trabalhadores, tendo em vista que as mulheres continuam trabalhando mais e ganhando menos.

Isso nos remete à pergunta fundamental sobre a relação entre cidadania e a esfera pública.  Tradicionalmente supunha-se que a cidadania fosse associada à esfera pública, tanto nos direitos quanto nos deveres. Mas muitas mulheres ainda vivem grande parte de sua vida dentro de esferas privadas, domésticas, e não públicas e algumas perguntas se interpõem.

O trabalho não remunerado de cuidados é compatível com a plena cidadania da mulher nos espaços públicos? A noção tradicional de cidadania política se concentra na prática de eleições livres como meio de alcançar a democracia. Mas a presença de mulheres seria importante ou somente seu direito de votar?

No Brasil, a luta pelo direito de as mulheres votarem teve início ainda no século XIX mas constitucionalmente as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1932 e somente em 2010 elegemos a primeira mulher ao posto mais alto da República.
A concorrência das mulheres em cargos políticos é, portanto, um processo muito recente na vida da democracia brasileira, que sempre contemplou um número muito maior de homens concorrendo a cargos políticos.

O Brasil ocupa hoje o 120° lugar na proporção de mulheres nos Parlamentos e, se considerarmos nossa participação nos executivos, esse ranking despenca mais ainda, tendo em vista que ainda não é obrigatório o registro na chapa de mulheres para disputa dos postos executivos. O avanço, nesse sentido, depende de que, além de concorrem às eleições, essas mulheres tenham condições reais de disputar e ganhar.

Apesar do crescimento nos últimos anos, o percentual de mulheres na política continua sub-representado, tendo em vista que apenas 8,7% de mulheres foram eleitas para os postos do legislativo na última eleição e embora representem 51,7% dos eleitores brasileiros, a participação das mulheres na Câmara dos Deputados é de 9%, número semelhante aos 10% registrados no Senado. No Poder Executivo, a situação não é diferente: das 26 capitais, somente uma têm mulher como Prefeita.

As políticas de ação afirmativas - seja por meio de estabelecimento de cotas que garantam mecanismos partidários de mais mulheres na direção, seja por meio de ações que obrigam que pelo menos 30% de mulheres estejam registradas nas chapas de disputas para cargos legislativos - são políticas que disputam a correlação de forças da nossa sociedade e permitem que avancemos por uma maior participação na vida política/pública, e mais do que isso, com condições de efetivar esses mecanismos e de realmente ocuparmos esses espaços de maneira paritária.

Há estudos que demonstram que as políticas relevantes, para as mulheres, são mais frequentemente implementadas pelos governos quando as mulheres estão presentes nos espaços de decisão, o que demonstra que somente eleições livres por si só não garantem a democracia plena e que as mulheres estejam presentes nos espaços políticos fundamentais.

Assim a presença cada vez maior das mulheres nesses espaços implica na necessidade de reestruturar completamente as relações sociais pautadas na divisão sexual do trabalho com base na reformulação e ampliação dos direitos e na constituição da cidadania feminina.


* Patricia Rodrigues – é Cientista Social formada pela USP, coordenadora do MOSCA (Movimento Social Cidadania Ativa), militante da Marcha Mundial das Mulheres e Conselheira Municipal de Juventude da Cidade de São Paulo.











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