Na inicio da década de 80 eu também era um sem teto e junto com mais 199 famílias de baixa renda formamos a Associação de Construção Comunitária por Mutirão Novo Horizonte, ainda na Associação Comunitária, situada na Rua dos Vianas. A seguir usamos o espaço do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil e depois as reuniões de organização aconteceram na área comprada, situada num morro em frente ao Clube da Volkswagen.
A entidade era algo meio complexo, pois só um pequeno grupo entendia que a nossa missão era muito maior que a construção de uma casa e que fazia parte de uma luta concreta, localmente encabeçada pelo Conselho Popular de Habitação e que vinha de vários enfrentamentos, em âmbito municipal, e nacional. Todos eles por falta de políticas habitacionais, que desse conta, por exemplo, do apoio a uma entidade como aquela, sem contar que participamos da fundação da União dos Movimentos de Moradia.
Certa vez, depois de vários problemas internos, perguntei ao nobre Paulo Freire, que na época era Secretário de Educação no Governo da Prefeita Luiz Erundina e que estávamos organizando o I Congresso Brasileiro de Alfabetização, qual era o segredo para unificar a linguagem de um trabalho como aquele, visto que cada família vinha de uma realidade diferente e portanto tornava-se muito difícil de coordenar. Ele na sua simplicidade, após ouvir meu relato, simplesmente me falou: "Sabe um carrossel? Aqueles banquinhos não giram harmoniosamente em volta de um grande eixo que os sustenta? Pois é, assim que vocês descobrirem qual é o eixo central do trabalho de vocês, tudo irá girar de forma harmoniosa para a consolidação do trabalho".
Voltei encabulado, pois suas palavras pareciam obvias demais, porém tinha a convicção de que não era tão simples assim, pois no dia a dia do trabalho, a partir das disputas internas, sabíamos que tinha pessoas que queriam muito mais que a casa. Queriam o poder e o controle absoluto do trabalho.
Passamos o próximo final de semana em seminário, com o principal objetivo de descobrir o que Paulo Freire queria dizer com aquilo e também tentar encontrar um formato de gestão que integrasse o trabalho. . Após várias horas de discussão e reflexão em reuniões em grupo, um deles chegou a seguinte conclusão: Viver em mutirão era o ato de sair do individual para o coletivo.
Assim como a provocação do Paulo Freire parecia obvia, também aquela frase parecia obvia demais, porém seu significado era tão abrangente, que a impressão que dava era de que ela respondia a todos os nossos questionamentos. O resultado foi imediato, pois identificamos novos formatos, que jamais seria possível se tudo isso não tivesse ocorrido e chegamos a apresentar a devolutiva ao Paulo Freire, que nos deu uma aula do que tínhamos descoberto, como forma de organização e integração.
As casas foram sendo construídas após vários anos de luta, com pouca expressão por mutirão, polis a maioria pagou para alguém fazer a sua casa. Com isso a essência principal do trabalho foi afetada.
Afirmei por diversas vezes no Curso Plano de Governo e Ações para Governar, da Fundação Perseu Abramo, que governar, a partir de um Projeto Programático e não Mercantilista, também se constitui num grande mutirão e em algo permanente, que nos envolve e passa a ser uma das causas das nossas lutas e pouco a pouco vai se materializando no nosso próprio projeto de vida.
No universo da governância (entendido como o desafio de governar à várias mãos), inicia sua construção já no Plano de Governo, no envolvimento dos atores da sociedade quando ainda era uma intensão, se amplia quando é capaz de envolver os setores organizados da sociedade para a formulação das Políticas Públicas e se consolida quando toma-se a iniciativa de empoderar o maior número de pessoas possíveis, no sentido de legitimar o Controle e a Promoção Social das pessoas envolvidas.
Ao entendermos que o poder é emprestado pelo povo e que a tarefa maior está na transformação da sociedade que temos para a sociedade que queremos e esse querer vir homologado pelo povo, torna-se importante o entendimento, que cabe aos gestores comprometidos, preparar a sociedade para a participação e o acompanhamento de um governo, ajudando a criar e respeitando novos fóruns participativos, além de capacitar seus representantes para ocuparem melhor o espaço conquistado.
Na prática, isso resulta numa nova forma de governar. Numa Gestão Pública, é o eixo principal de trabalho que define seu modelo de gestão.
A fala de Paulo Freire continua viva nos meus ouvidos, apenas com uma diferença, a cada vez que tenho a oportunidade de falar sobre ela, é como se renovasse meus compromissos e conquistasse novos adeptos para continuar nessa longa caminhada na construção de novos valores e de um mundo onde caiba todas as pessoas de bem.
Antonio Lopes Cordeiro
Antonio Lopes Cordeiro
Pesquisador em Gestão Pública e Social
Laboratório de Gestão e Políticas Públicas - Fundação Perseu Abramo
Laboratório de Gestão e Políticas Públicas - Fundação Perseu Abramo
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